Ana Carolina Radd e Thaís Dias Luz Borges Santos[1]
Abordar a conjuntura política brasileira não é uma tarefa fácil dada a celeridade das mudanças. Há quem afirme que o país vive uma crise política, cujos desdobramentos renderiam algumas teses de doutorado. A fim de apresentar algumas breves reflexões acerca das transformações que vêm ocorrendo no Brasil nos últimos anos, o recorte que faremos aqui se inicia com as manifestações de junho de 2013.
É provável que a onda de protestos que se espalharam pelo país, evidencia os limites da política de conciliação de classes dos governos petistas, como trazem alguns teóricos.[2]
Esses protestos, que se iniciaram em São Paulo em função do aumento da tarifa do transporte público urbano, alcançaram escalas maiores e pautas heterogêneas que, em linhas gerais, representavam a falta de confiança e a insatisfação da população nas instituições públicas.
Há que se destacar, entretanto, a relevância do surgimento, nesse cenário de protestos, de novos atores sociais que sustentaram, e ainda sustentam, a base para a expansão da onda conservadora no Brasil e sua chegada à cadeira presidencial.
É evidente que a pluralização de valores nos anos de governos petistas (2003-2016),[3] a partir de políticas de reconhecimento, favorece a organização de movimentos sociais e suas manifestações de descontentamento com alguns aspectos da política governamental. No entanto, junto a esse descontentamento das camadas populares e setores sociais, entram na arena pública brasileira setores da burguesia e das classes médias expressando sua insatisfação diante das políticas sociais e da intervenção do Estado na economia.
Esse cenário de instabilidade junto à eclosão da crise econômica, que se torna manifesta em 2015, contribui para o golpe jurídico parlamentar que destitui a Presidenta Dilma Rousseff em 2016. Nesse momento, quem assume a presidência é o então vice presidente, Michel Temer, que fora eleito numa chapa junto com pt. Ao assumir o governo, primeiro interinamente, depois de modo permanente, Temer inicia, em sintonia com uma política neoliberal, o desmantelamento das políticas sociais e redistributivas que vinham permitindo uma melhora na condição de vida das classes trabalhadoras e de setores populares, assegurando o acesso à educação, saúde e moradia.
As chamadas manifestações de junho de 2013, ou “jornadas de junho”,[4] surgem de uma convergência de interesses díspares e, até mesmo, opostos. Ganham expressão nas jornadas de junho insatisfações tanto daqueles setores que buscavam avançar nas reformas que vinham sendo feitas pelos governos progressistas desde 2003, com a entrada do Presidente Lula, quanto daqueles que buscavam o oposto, a destruição destas políticas, que em muitos casos passou a se configurar no “anti-pt” ou “anti-ptismo”.
Essa polarização não só favoreceu a eleição do Presidente Bolsonaro, que construiu sua campanha com base nessa polarização, reduzindo o processo eleitoral brasileiro em “pt” e “anti-pt”, como criou uma espécie de guerra-fria à brasileira, construindo a oposição “pt” versus “anti-pt” como sinônimos de esquerda versus direita.
O novo conservadorismo no Brasil presente na vida social expande fronteiras e segue em direção ao universo político e econômico.
Hoje em dia, falar do cenário político brasileiro requer uma compreensão do avanço de duas frentes, ora convergentes, ora difusas, que são: o grupo dos neoliberais e o grupo dos neopentecostais.
Há quem diga que o neoliberalismo no Brasil se inaugura nos anos 1990 durante o governo de Fernando Collor de Mello, e se consolida então entre os anos 1995 e 2003 no governo de Fernando Henrique Cardoso. Em um cenário econômico frágil, da alta de inflação, que ainda vivia os reflexos do fim da ditadura militar, a solução encontrada foi a da redução de investimentos públicos e privatização de empresas estatais. Até o momento, o governo do presidente Bolsonaro tem apresentado uma visão seletiva do neoliberalismo.
Segundo a socióloga Angela Alonso:
Na nossa história recente, desde Fernando Henrique Cardoso, o país vem caminhando em direção a pautas de centro e centro-esquerda. E vamos tendo reações do outro lado. Este é um país muito conservador. Escrevi um livro sobre a abolição da escravidão: demoramos quatro séculos para fazer isso. Não é um país que muda fácil, nem rápido e nem sem reação. As mudanças que tivemos no país desde a constituinte de 1988 levaram as instituições numa direção mais de centro esquerda. Temos uma Constituição muito progressista, instituímos políticas de inclusão social, e isso não é um consenso. Então existem na sociedade brasileira vários polos de insatisfação contra essa direção progressista e que foram se acumulando ao longo do tempo. A história não é progressiva num sentido evolutivo. Há movimentos em uma direção e reações do outro lado.[5]
A história mostra o quanto política e religião caminharam juntas. Se algumas nações têm buscado garantir um Estado Laico e democrático que separa dogmas da fé da vida privada e dos atos públicos, e até mesmo estatais, outras nações precisam lidar com o avanço das concepções morais e religiosas nas decisões do Estado. É nesse contexto que surge, no cenário político brasileiro, a igreja evangélica.
Em meados de 1980, os pentecostais já representavam mais da metade de todos os protestantes brasileiros. Segundo Burity (2018) esse crescimento, que já se aproxima de dois terços, se sustentou por uma atuação política marcada pela denúncia de discriminação e perseguição religiosa e de uma “ameaça comunista pairando sobre o país”, na saída do regime militar.[6]
A Bancada Evangélica Brasileira é formada por um grupo de fundamentalistas religiosos que legislam em prol de suas convicções morais. Além de seus esforços para converter todos ao seu redor à sua religião, há um forte posicionamento e atuação contra a descriminalização do aborto, da eutanásia, contra pautas lgbtq+, etc.
Em 2017 a Bancada Evangélica era composta por 198 deputados federais e 4 senadores. Esta é uma bancada não homogênea, que não garante coesão por si só e se sustenta por pragmatismo político, primeiro pela necessidade de disputa com a Igreja Católica, depois com “os comunistas”, e mais recentemente pela disputa com os movimentos identitários, feministas, lgbtq+, negros, indígenas e com o “marxismo cultural”.
Desde 2015 se configura uma nova ordem “pós-lulismo”: a tal chamada “onda conservadora” da qual emergem diferentes frentes do conservadorismo numa busca por uma nova hegemonia, que entra em curso a partir das mudanças na legislação e medidas anunciadas pelo governo interino de Michel Temer, com a rápida destruição de marcos legais, garantias constitucionais e das políticas sociais implementadas desde a redemocratização do país, em especial nos últimos dez anos.
No discurso eleitoral do atual presidente, Jair Messias Bolsonaro, três temáticas faziam conexão com seu eleitorado: economia, segurança pública e uma agenda moral. Além disso, Alonso (2019) categoriza o eleitorado de Bolsonaro em três grupos: o primeiro é composto por aqueles que têm uma adesão moral aos valores do atual do presidente; o segundo é composto por aqueles que desde o mensalão querem mudar o jogo político ‘salvando’ o país do pt; e por último, o terceiro grupo seria formado por aqueles que relativizaram o discurso de Bolsonaro acreditando que ele fosse menos convicto e soubesse a diferença entre a prática da gestão do Governo e o discurso de campanha eleitoral.
Essa nova ordem hegemônica, que se configura hoje, no atual governo, dentro de suas contradições e fragilidades morais, tem como marca, e traz em seu discurso, uma urgência de estratégias de desmonte das construções políticas dos governos ptistas e da tão jovem democracia brasileira. Do ponto de vista estrutural, as mudanças já operadas pelo atual governo são:
- Extinção do Ministério do Trabalho, com suas atribuições realocadas em outros ministérios.
- Ministério da Agricultura passa a ser responsável pela demarcação de terras indígenas e quilombolas.
- Comunidade lgbt retirada das diretrizes para Direitos Humanos;
- Extinção do Ministério da Cultura, cujas pastas agora integram o Superministério da Cidadania.
- Concentração das responsabilidades econômicas em um único ministério, o Ministério da Economia.
O governo Bolsonaro vem corroborado, com toda sua trajetória política, à agenda moral: o atual Presidente da República, apesar de sua baixa produtividade quando foi Deputado Federal pelo estado do Rio de Janeiro, ficou conhecido por agredir uma parlamentar,[7] proferir ofensas às pessoas lgbts[8] entre outras manifestações de seu conservadorismo. Na sessão do Congresso legislativo em que foi votado o processo de impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, ao anunciar seu voto, Bolsonaro fez um discurso de exaltação ao primeiro militar reconhecido pela justiça brasileira como torturador, que também teria sido o chefe do DOI-Codi de São Paulo entre 1970 a 1974, período em que a Dilma esteve presa e foi torturada por sua atividade contra a Ditadura Militar.[9]
Além da estratégia de disseminação de mentiras pelas redes sociais, como o famoso caso do “Kit Gay”[10] utilizado em sua campanha, Bolsonaro continua se pautando em um discurso violento contra mulheres, lgbts, negros, identidades étnicas e todos aqueles que seus seguidores julgam como ameaça à Família, à moral e aos bons costumes.
Essas declarações durante a campanha presidencial de 2018 levaram a população, principalmente mulheres, a sucessivos protestos, conhecidos como “Ele Não”.[11] Nesse cenário, surgem também, diversas manifestações de “verde e amarelo”,[12] em apoio à candidatura de Bolsonaro, sustentadas por um discurso de apelo moral, anticomunista e antiptista.
Em um discurso exibido em tempo real nas manifestações de seus apoiadores, na véspera do segundo turno da eleição presidencial, Bolsonaro afirma:
“[O pt e seus eleitores] Perderam ontem, perderam em 2016 e vão perder a semana que vem de novo. Só que a faxina agora será muito mais ampla. Essa turma, se quiser que ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei de todos nós. Ou vão pra fora ou vão pra cadeia. Esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria.[13]”
Reproduzindo seu discurso violento, Bolsonaro, em seu primeiro ano de mandato segue no mesmo tom: ameaçando os que ele julga como seus inimigos. Nas políticas de seu governo, enquanto mulheres, negros, lgbtq+ e populações tradicionais receberam atenção limitada, há um destaque para as pautas conservadoras “em defesa da família e dos bons costumes”.
No lançamento do Aliança pelo Brasil, partido que o presidente quer criar, ele defendeu o silêncio sobre o racismo como forma de combatê-lo, declarando ainda que “tudo é coitadismo. Coitado do negro, da mulher, do gay, do nordestino, do piauiense.”
Alguns especialistas entendem que o ataque às minorias é uma estratégia para aprovação de pautas liberais que não teriam receptividade na sociedade. Como parte da estratégia, ele coloca pessoas com posições políticas conservadoras para ocupar as chefias das pastas fundamentais nos Ministérios e Secretarias que deveriam assegurar os direitos das mulheres, negros e negras, e populações tradicionais como, a antiga Secretaria de Direito das Mulheres, Secretaria de Igualdade Racial e a Fundação Palmares. O atual presidente da Fundação Cultural Palmares, instituição voltada para a valorização e reconhecimento étnico-racial dos povos negros na sociedade brasileira, afirmou que “Ele não está ligado ao movimento afro” e se posiciona contra as ações afirmativas e as políticas sociais.
Seguindo a lógica das pautas conservadoras que compõem o governo Bolsonaro, e suas declarações escandalizantes, na semana que antecedia o fechamento deste texto o chefe da Secretária Especial da Cultura de seu governo foi exonerado do cargo após um discurso proferido de forma análoga ao discurso do ministro da Propaganda da Alemanha Nazista, Joseph Goebbels, antissemita radical e um dos idealizadores do nazismo[14]. A grande repercussão levou à queda do secretário, mas todas/os sabemos que as ideias que sustentam tal discurso produzido permanece ativo no governo.
Seguindo a lógica das pastas conservadoras que compõem o governo Bolsonaro e suas declarações escandalizastes. Na última semana o chefe da Secretária Especial da Cultura de seu governo foi exonerado do cargo após um discurso proferido de forma análoga, um discurso do ministro da Propaganda da Alemanha Nazista, Joseph Goebbels, antissemita radical e um dos idealizadores do nazismo. A grande repercussão levou a queda do secretário, mas todas/os sabemos que as ideias que sustentam tal discurso produzido permanece ativo no governo.
Esperamos que os destaques aqui apresentados consigam contextualizar o leitor quanto às mudanças que o Brasil tem vivido desde as Manifestações Populares de 2013 à eleição do presidente Jair Bolsonaro.